domingo, maio 22, 2005

Michal Mackú e a fotografia experimental expressiva

Michal Mackú nasce em 1963 na Républica Checa. Nos seus trabalhos, utiliza preferencialmente o nú, descascando o papel fotográfico, de modo a constituir uma fina película, que depois enruga, ou mesmo rasga, de modo a dar a sensação de que fotografa apenas a pele das pessoas. Fotografia experimental expressiva, assim se lhe refere o catálogo do Museu Ludwig, de Colónia, publicado pela Tachen

O tempo

“Sabes, frei António, o tempo é algo que não se sente, que não se pensa. Há um tempo para mandar, um tempo para sofrer, um tempo para amar, enfim há um tempo para tudo, mas o tempo não se pode pensar e sentir. Tu pensas o tempo, frei António? Não, tu pensas no tempo! Tu sentes o tempo? Não, tu só podes sentir no tempo, porque o tempo, frei António, é algo fugidio, é tão instante que se torna impossível de captar. Mas o tempo faz parte de nós, não o pensamos, não o sentimos, mas em nós o pressentimos, em nós o percepcionamos, o tempo existe por nós! Pressentes em ti o tempo, frei António?”

Isto escrevi há uns meses, num texto que já não é meu, porque o ofereci ao Vasco Ribeiro (um grande abraço para ti). Escrevi-o para uma fotografia e nele falo do tempo, no tempo, esse grande escultor, como já lhe chamaram, no tempo que nos vai esculpindo, sem nunca se enganar no escopro e no cinzel. O tempo que é irrepetível, irrecusável e instante. O ser humano desde muito cedo pensou no tempo porque nunca o conseguiu dominar. Já lhe chamou Deus e lhe consagrou imagens e templos, já lhe teceu loas, já viveu e morreu por ele...
Desde muito cedo os artistas o quiseram representar, depois aprisionar, depois libertar. Ele é Cronos, mas também Janus. O derradeiro sentido do homem é o da imortalidade, porque isso lhe permitirá sair do tempo.

Vem todo este arrazoado, que espero me perdoem, pelo facto da fotografia ser uma arte do tempo. Tempo e luz, eis a matéria-prima da fotografia, o resto é técnica e saber-fazer. A fotografia pretende captar a luz inscrevendo-a num tempo. Mas é um tempo que se torna intemporal, porque o tempo escapa-se a todos. Tentem conservar uma pedra de gelo em cima da areia do Sara ao meio-dia, assim é tentar captar o tempo numa fotografia. Apenas ficaremos com uma imagem fugidia, da água que se some ao nosso olhar, uma memória apenas. Já o disse uma, fotografias são farrapos de memórias, vestígios dessas memórias que depois tentamos reconstituir num processo arqueológico, pedaço a pedaço. Quando mostramos uma fotografia somos arqueólogos da memória e o que queremos é que a nossa memória seja reconhecida através de uma espécie de mapa do tesouro, onde damos pistas – “vejam, este sou eu, este é o meu tempo, este é o tempo em que eu vivi, o tempo em que eu procurei ser constantemente novo, em que eu procurei reviver em instantes que hoje mostro!”. Fazer fotografia é assim uma maneira em que procuramos os vestígios da nossa imortalidade, nunca conseguida mas sempre procurada.

Mas o que tem este texto a ver com fotografia? É que este reconhecimento da memória está presente em todas as formas de arte. Porque arte é sempre uma forma que se inscreve na cultura e cultura, entre outras funções, serve como memória extracorpórea, talvez uma das coisas que nos torna singulares no mundo animal. Ao fotografar o Palacete do Visconde de Sacavém, em Lisboa, eu estou a ter uma atitude de meta-arte. Eu mostro o mapa do tesouro do Visconde, mas esse mapa também é meu, porque o estudei ou, pura e simplesmente, porque o vi e o fotografei. E assim, através de uma ilusão técnica, o tempo do Visconde se misturou com o meu. Não falo em destino, porque esse seria futuro e o futuro não existe. As feiticeiras gregas teciam as linhas do destino, a magia da fotografia tece as linhas do passado, da nossa memória, de nós.

Josef Koudelka

Josef Koudelka nasceu em 10 de Janeiro de 1938 em Boskovice, Checoslováqui. Estuda engenharia na Universidade Técnica de Praga entre 1956 e 1961, começando a fotografar a partir de 1961/62: a família e os amigos, ciganos na Checoslováquia. Em 67, depois de seis anos de profissão, demite-se do seu emprego de engenheiro aeronáutico para se consagrar à fotografia. Em 68, está em Praga. Tem 30 anos. No dia 21 de Agosto, quando os tanques entram na cidade (n. Tanques soviéticos, fim da Primavera de Praga), Koudelka segue-os por toda a parte. Regista todas as imagens, do princípio ao fim: a resistência, a capitulação de um sonho, as faces da tragédia. As suas fotos, que saem milagrosamente do país, chegam à Magnum, Elliott Erwitt, na época presidente da agência, manda vir os negativos correspondentes e monta com eles uma curta-metragem para a CBS. No ano seguinte, essas imagens correm mundo sem que o seu autor seja revelado. É ainda como anónimo que Koudelka recebe a medalha de ouro do Robert Kapa Overseas Press Club, em 1969. Parte para o exílio em 1970, na Grã-Bretanha, mas só reconhecerá a autoria das fotos de Praga em 1984, depois da morte do seu pai (este permanecera na Checoslováquia). É membro Associado da Agência Magnum a partir de 1971 e membro efectivo desde 1974. Naturaliza-se francês em 1987. Viajante incansável, Koudelka já visitou Portugal, tendo fotografado sobretudo o sul do país.

apud Grande Reportagem, Novembro de 1991, pp.124-129

Fotografia Conceptual

Em Novembro de 2002, José Marafona publica no site fotográfico 1000imagens.com, um artigo intitulado “Conceptualismo na Arte Fotográfica”. Foi este o meu primeiro contacto com esta vertente da fotografia, que imediatamente me motivou um grande interesse, que aliás aumentou à medida que fui “descobrindo” o trabalho daquele fotógrafo.
“(...) a realidade pretendida pode ser (re)criada induzindo com isso um conceito, ou criando um conceito usando uma realidade existente.” (Marafona, 2002)
Do interesse intelectual, a pouco e pouco, passei a um estado de deslumbramento. O conceptualismo fotográfico era um caminho que se me afigurava como exemplar na procura de uma expressividade que a fotografia mais clássica pode negar.
“O conceptualismo aplicado à fotografia é uma “ferramenta” que pode ser ajustada por forma a criar fronteiras ténues entre estados mentais próximos do surrealismo, mas separados logicamente por uma pequena dose de razão.” (Marafona, 2002)
Comecei então a brincar com a manipulação digital de fotografias, como forma de experimentar caminhos. Não me sentia, nem técnica nem esteticamente preparado para criar fotografia conceptual. Havia, e ainda há, o pudor do aprendiz perante a obra do mestre (que me perdoe o José). Até que um dia arranjei coragem e inseri no 1000imagens, uma fotografia que incluí no tema fotografia conceptual. E foram alguns comentários positivos de companheiros e do próprio José Marafona, que me levaram a continuar.O que me atrai neste caminho fotográfico, é a possibilidade de criar (mais do que fotografar) através da fotografia. Criar um conceito a partir de ícones vários e distintos, recriar uma realidade, um cosmos próprio, normalmente onírico, sem qualquer preocupação de contar uma história, mas dando pistas para que a história exista. Entre o criador e o observador estabelece-se um laço, um laço entre o sonho e a realidade. Não há aqui (embora possa resvalar para) surrealismo. O surrealismo resulta de automatismos psicológicos, o conceptualismo joga com a razão, implica uma concordância icónica com a realidade. O surrealismo trabalha com o inconsciente, o conceptualismo cria consciência.Estabeleci a minha referência à obra de José Marafona, embora os meus trabalhos estejam longe da sua criação depurada e da sua qualidade de imagem, da mesma maneira que este autor refere a obra de Manuel E. A. Sousa, já falecido, seu compagnon de route, fotógrafo dos primórdios do conceptualismo português dos anos 70 do pretérito século. Do pouco que dele conheço, reforço o que diz Marafona, infelizmente Manuel Sousa está esquecido na história da fotografia portuguesa.A fotografia conceptual tem hoje uma ferramenta que Manuel Sousa não dispunha no seu tempo, os editores de imagem. Mais fácil se torna o trabalho, que naquela altura bem complicado devia ser. Mas é precisamente esta vantagem que provoca alguma incompreensão relativamente à fotografia conceptual. Muita gente, arvorada em purista, tal Castilho contra Antero, zurze neste tipo de trabalho, forte e feio. Felizmente que já se vão vendo alguns fotógrafos a experimentar, a fazer e a incluir os seus trabalhos nesta categoria. Em 2002 dizia Marafona “(...) uma viagem através dos meus medos, alegrias, frustações e ansiedades, apoiando-me aqui e acolá nas minhas contradições, aguardando forças para continuar num caminho que não tem referências de destino ou companheiros de viagem.”Afinal José, a sua viagem serviu para desbravar terreno!
Venteira/Amadora, 21 de Janeiro de 2004

sexta-feira, maio 20, 2005

Outra vez o Banal

Por vezes, o melhor método para se tentar compreender as palavras é recorrer à sua génese. Encontramos aí situações extremamente curiosas. É o que acontece com o termo “banal”, que alguns linguistas acreditam ser um galicismo escusado, mas que hoje se banalizou, a ponto de entrar para uma linguagem erudita, substituindo o termo “vulgar”. Mas a sua génese nada tem de vulgar (ligado ao povo). Pelo contrário, o termo vem de poder de Bannus, que designava, na origem, o poder geral de comando, um direito dos chefes guerreiros germânicos que trespassou para o direito feudal, na Idade Média. Com o feudalismo consolidado, passou a designar (banalidades) uma espécie de imposto, em que os camponeses de um feudo eram obrigados a utilizar determinados equipamentos (pagando por isso), propriedade do senhor do feudo. E é daí que o termo banalidade passa a significar o mesmo que vulgar.

Hoje em dia, como já disse, banal acaba por ter um sentido mais erudito que vulgar e é aproveitado para dar mais força a determinadas expressões. Em arte é muitas vezes utilizado o termo banalização. Uma imagem, repetida muitas vezes, banaliza-se, torna-se vulgar, não original. Durante muito tempo (e ainda hoje) os artistas tentaram ser tudo, menos banais. Pelo contrário, nota-se uma tentativa de procura da originalidade. Mas essa procura obriga a rupturas. Momentos há, da história da arte, em que a necessidade de fixar gostos, correntes, movimentos, provocavam a necessidade de banalizar formas, em que a criação recorria a plastificações banais, mas com maior ou menor rigor do que se entendia por “boa” arte. A determinada altura, um novo espírito recomeçava a demanda da procura da originalidade, criticando veementemente a banalização e o processo continuava. Ruptura, banalização, ruptura, eis o ritmo da história da arte ocidental (o Oriente é outra história).
Outra questão em que os artistas tinham que ter muito cuidado era a banalização das temáticas. Ai daquele que se permitisse mostrar o que era banal, o que era do dia a dia. É o século XIX que põe isto em causa. Cada vez mais a vida quotidiana tem uma expressão na imagética artística, cada vez mais o objecto banal se encontra na tela, na tábua, no papel fotográfico. Pois, porque a fotografia tem aqui um papel fundamental, na desbanalização do objecto banal. Mas foi, já no século XX, que movimentos como o Dada, a Arte Pop, etc., descobriram o objecto banal com potencialidades de sacralização. É assim que um urinol se transforma pela adição de um simples título – “Fonte da Vida”, é assim que uma lata de sopa de tomate se torna num ícone de uma quase civilização. Mas não se iludam, não foi a força plástica que serviu de argumento. Foi a ideia.

E a fotografia? Ela está no cerne de toda esta questão. Não é ela a intrusa no mundo das artes plásticas do século XIX? Não foi ela parceira constante dos movimentos atrás mencionados? Ele é Man Ray, eles são os métodos de fotogravura. Até o hiper-realismo vem agora imitar a fotografia e a body art e a land art só existem, só são perenes porque existe a fotografia.
Mas a fotografia quer autonomia. Torna-se uma arte por direito próprio, porque é memória e criação e comunicação. Afinal as características de qualquer arte pura e dura! Mas é aquela que mais risco corre de banalização. Tanto da forma como da temática. Vejam as discussões infindáveis acerca do que é fotografia. Manipulação digital é fotografia? Mais um PDS, mais um barquinho, mais um gatinho, olha uma foto de família!!! Fotografar arquitectura é original? E se for escultura? E se for pintura? Afinal o que é banal? Tudo é banal, menos a sensibilidade, menos o bom gosto. Ora aqui temos uma realização do século XIX, que afinal tão hodierna é – sensibilidade e bom gosto. E memória e criação. Criemos então, criemos a partir de memórias que são nossas e portanto nunca banais, uma memória não pode ser partilhada, só o registo dessa memória, que se torna apenas vestígio. Um dos filósofos de que eu mais gosto, Merleau-Ponty, disse uma vez que “um homem nasceu no instante em que o que era apenas no fundo do corpo materno, um visível virtual, se tornou ao mesmo tempo visível para nós e para si (tal como) a visão do pintor é um nascer continuado”. Creio que podemos dizer o mesmo do fotógrafo (do fotógrafo consciente)! Também a visão do fotógrafo é um nascer continuado, também a fotografia nasce no momento em que o visível virtual (memória do objecto) se torna ao mesmo tempo num visível para nós e para si (fotógrafo/ser). Logo nunca é banal!

Acerca de uma frase de Charles Baudelaire

LA BEAUTÉ

Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour, Est fait pour inspirer au poète un amour Eternel et muet ainsi que la matière.

Je trône dans l'azur comme un sphinx incompris; J'unis un cœur de neige à la blancheur des cygnes; Je hais le mouvement qui déplace les lignes; Et jamais je ne pleure et jamais je ne ris.

Les poètes, devant mes grandes attitudes, Que j'ai, pour fasciner ces dociles amant, De purs miroirs qui font toutes choses plus belles: Mes yeux, mes larges yeux aux clartés éternelles!



Charles Baudelaire é um dos grandes poetas românticos, considerado um dos chefes de fila do decadentismo romântico. Mas para além da sua poesia é também conhecido pelos seus ensaios sobre arte. Desenvolve uma ideia de beleza eterna, ideal, quase clássica, a partir de uma ideia da Natureza à maneira de Rousseau, uma Natureza não natural mas naturante, uma natureza que o homem apenas consegue conspurcar. Curiosa é a sua relação com o Realismo emergente, que considera um insulto lançado contra a face dos homens e também extremamente curiosa é a sua atitude relativa à fotografia – “Um deus vingador deu ouvidos a esta multidão (Realistas) e Daguerre é o seu Messias!).

É neste contexto que deveremos compreender esta frase de Baudelaire. Para ele a arte devia assentar na natureza, mas não em qualquer natureza. Ou seja, a natureza que ele fala não é a realidade.

Esta discussão repassa todo o século XIX e só no século XX teve respostas convincentes (ou talvez tenha tido) ao nível da pintura. Na fotografia é uma discussão ainda para ser feita, ou que se vai fazendo muito lentamente. Peguemos nesta foto. Paulo Pinto dá-lhe o título de “Fúria”. No fundo, transmite para a imagem um sentimento humano que não existe na natureza, é então uma natureza naturante. Não é a naturza que ele viu, é a natureza que imaginou ao pensar na maneira de a apreender. Conceptualizou-a, não a copiou mecanicamente. A técnica é mecânica, mas o impulso artístico é humano! Humanizou-a portanto. Toda a fotografia é manipulação, já o disse muitas vezes. Contudo essa asserção levanta dúvidas a muita gente, lançando uma ideia negativa. Esta manipulação de que eu falo é extremamente positiva. É essa manipulação que confere à fotografia o ser arte.

O Álbum Cunha Moraes

Há alguns anos, através de uma herança familiar, veio ter à minha mão um álbum extremamente curioso – “África Occidental, Album Photographico e descriptivo”, de J. A. De Cunha Moraes, publicado por David Corazzi, editor em Lisboa, em 1885. Infelizmente só possuo a I parte deste Album, cuja contém 38 fotografias. É sem dúvida uma peça importante, tanto no aspecto etnográfico, como no histórico e, sobretudo, uma peça importante para a história da fotografia portuguesa..

Deixo aqui as palavras introdutórias de Luciano Cordeiro, que prefaciou a obra e que reputo de interesse, não só como apresentação, mas também pela forma como se via a fotografia à época.

Como é lógico, se alguém estiver interessado na temática, terei muito prazer em facultar o estudo da obra que, aliás, não está (pelo menos não estava há dois anos atrás) disponível na Biblioteca Nacional.

O Nosso Album
Por Luciano Cordeiro


“Faltava-nos isto: - que a machina photographica se emparceirasse definitivamente com o hypsometro, com o thermometro, com o sextante, n’esta conquista ideal do Continente Negro; - que a reproducção do panorama, da figura, da natureza viva e da natureza morta, como dizem os artistas, acompanhasse a determinação do clima, do relevo, da situação.
A palavra é certamente a arte por excellencia, a arte ubíqua. Ha nos livros dos exploradores africanos uma infinidade de descripções primorosas que fixam, com uma grande força communicativa, a idéa, a noção, a verdade objectiva directamente colhida. O desenho transmitte, corporisada, a impressão immediata do viajante. Completa a descripção. Mas em tudo isto o factor pessoal: - a destreza da mão, a disciplina da penna, o temperamento, a educação, o caracter – o artista, em summa, - impõe-se necessariamente, inconscientemente, á impressão recebida e communicada.
Na descoberta e no aperfeiçoamento successivo dos processos photographicos entra em grande parte, como estimulo persistente, a necessidade, o ideal, - como todos os ideaes nunca attingido e sempre procurado, - da reproducção extreme, da copia impessoal. Os olhos, o cerebro, a palavra, têem como machinismo photogrphico, reproductivo, este vício: - impõem-se á reproducção, juntam-se, modificando forçosamente, ao objecto reproduzido. (...) Substituir este meio transmissor, activo, e por conseguinte modificante, intelligente, e por conseguinte livre, por um outro perfeitamente passivo, que fixe e represente o que se viu, não como qual o viu mas como é: - eis a razão e ao mesmo tempo a finalidade positiva dos processos photographicos.
(...) Vinte annos conta d’Africa, este talentoso e valente rapaz. Cunha Moraes tem percorrido por diversas vezes a costa, desde o Quillo até além de Mossamedes, internando-se em diversos sentidos nos sertões mais inhospitos, para colher, muitas vezes com risco de vida e sempre à custa de um trabalho paciente, os seus quatrocentos clichés, dos quais offerece hoje ao publico alguns dos mais formosos e interessantes.”

Para uma aproximação a um conceito básico de fotografia

O século XIX é um século charneira na história da civilização ocidental, por várias razões, entre as quais a Revolução Industrial avulta. Tudo, economia, política, cultura, mentalidades, tudo foi influenciado por esse fenómeno económico, nascido das necessidades concorrenciais de uma Inglaterra que tinha acabado de chegar ao centro da Economia-mundo. Também a arte vai sofrer grandes transformações neste século, primeiro o romantismo, talvez o primeiro grande movimento artístico que não o é, ou seja, que dentro de si alberga várias formas de sentir a arte, depois os realismos e naturalismos que encetam as grandes discussões do que é emular ou imitar o real. Basta pensar no impressionismo para nos apercebermos desta discussão, mas já antes o realismo francês ou a Escola de Barbizon nos encaminhavam para aí. E é nessa altura que a fotografia inicia também o seu processo de autonomização artística, aliás lançando duvidas sobre o papel da pintura, dúvidas a que os impressionistas e neo-impressionistas responderam (discussão continuada pelos expressionistas, tanto os fauvistas como os expressionistas alemães) e que o Cubismo definitivamente solucionou. Permitam-me que ligue, num ponto de vista quase quimérico e nunca por nunca definitivo, um possível conceito de fotografia a este caminho da pintura, que se iniciou no romantismo e desembocou no cubismo. É uma reflexão meramente pessoal e feita em cima do joelho. Comecei a pensar neste texto, eram 19.10h, no caminho da escola para casa. Sentei-me ao computador para o escrever às 23.05h. permito-me a mim mesmo 1 hora para escrever este texto.

Uma das consequências das grandes transformações culturais do século XIX foi a adopção de um espírito racionalista ultraconservador, normalmente designado por positivismo, ligado à filosofia do conhecimento de Comte e que nas ditas ciências sociais foi conhecido como cientismo. A validação do conhecimento através de um método radicalmente científico implicou a necessidade de adaptar todo o conhecimento através de uma catalogação ou compartimentação desse mesmo conhecimento, à imagem da hierarquia das ciências de Comte.
Também a arte com isso sofreu. Necessidade de especialização, divisão das artes – Belas artes, artes aplicadas, artes maiores, artes menores, artes decorativas. Não que os termos fossem inteiramente novos, mas vão agora ser utilizados para “arrumar” a arte que desde sempre se movimentava num caótico jogo de saberes, sobretudo de saberes-fazer. Se pensarmos no Renascimento, onde colocaremos, por exemplo, Miguel Ângelo? Ele é escultor? Arquitecto? Pintor? É tudo isso e mais alguma coisa e utiliza os saberes de uma arte em todas as outras artes. Mas afinal o que é a arte? Correndo o risco de ser demasiado reducionista, arte é a manipulação do espaço através da utilização das diversas dimensões de forma a obter formas (visuais, sonoras, sensoriais, vivênciais...) que despertem emoções estéticas, logo que comuniquem. Ora, neste momento da nossa história (18 de Junho de 2003, pela cronologia europeia ocidental) são conhecidas pelo menos 4 dimensões do espaço, embora outras já se estejam a antever através do método matemático. Altura, largura, profundidade e tempo! As ditas 3 artes maiores foram assim classificadas – a pintura utiliza as duas primeiras dimensões, a escultura 3, a arquitectura trabalha com as 4...
Desde muito cedo que a pintura procurou a 3ª dimensão, encontrada pelos italianos do renascimento através da perspectiva linear, conceito que também passou a ser utilizado pelas outras artes. Mas no século XIX a fotografia começou a ameaçar seriamente esta posição da pintura. Afinal a pintura começa a pretender transformar-se numa representação do real, mas começou a ser ultrapassada pela fotografia. Afinal a tão badalada profundidade de campo da fotografia, não é mais do que a perspectiva, coisa que os italianos demoraram tanto tempo a encontrar e a aperfeiçoar. A resposta apareceu no atelier de um fotógrafo, Nadal, com a primeira exposição dos rejeitados impressionistas. Estes, agora, querem captar o tempo, querem captar o instante visível. Anos mais tarde os cubistas captam agora o tempo invisível, decompõem o espaço em tempos passados através de uma intelectualização desse mesmo espaço. A pintura nunca mais foi a mesma e nunca mais correu o risco de ser ultrapassada por uma simples técnica como era encarada a fotografia.
Mas a fotografia não permaneceu parada, de técnica (mera) passou a ser entendida, também, como uma arte! Mas como, se apenas pode representar o real e se a arte já tinha ultrapassado esse degrau? Assumindo que não pode representar a realidade. Assumindo que qualquer fotografia, por mais perfeita tecnicamente que seja, por menos distorcedora que seja a lente da máquina, por mais próximas que sejam as cores das reais, nunca poderá representar uma realidade, pela causalidade do momento, pela escolha que representa uma qualquer tomada de vista, porque, afinal, o tempo é sempre contínuo e nunca poderá ser congelado por uma qualquer imagem. A fotografia, assim, deixa de ser uma técnica e torna-se uma arte. O fotógrafo mais não faz (seja ele um foto-jornalista, um fotógrafo de moda ou um foto-artista) do que descontextualizar imagens, logo manipulá-las, ordenar essas imagens num novo cosmos de forma a que elas permitam emoções estéticas, ou seja que comuniquem. Atenção, uma emoção estética não é apenas uma aproximação ao Belo! Entre o Belo e o Horrível, várias categorias e subcategorias se encontram – o dramático, o patético, o sensual, o humorístico, etc., etc., etc.
São meia-noite e sete minutos – gastei mais dois minutos do que queria...

Manifesto da intervenção sobre fotografia

Uma das características possíveis da arte moderna (e entendo aqui arte moderna como aquela que se segue à II Guerra Mundial) é a transgressão ao espírito de uma arte mais tradicional.

Este espírito transgressor tem inicio com o movimento Dada (Duchamp e os seus ready-made por exemplo), passando pela Pop Art, Minimal Art, Happening, Arte Conceptual… Sobretudo vai-se agir sobre o suporte, mais do que sobre o conteúdo, ou melhor, a acção artística encerra-se no suporte constitutivo, A arte torna-se mais acção e menos dimensão (em especial no Happening e na arte Conceptual).

Assim sendo, a arte actual enforma-se escatologicamente na intervenção, ultrapassando o sentido único da criação. Lógico é que arte continua a ser (e tem que continuar a ser), sobretudo criação, criação de um cosmos harmónico ou não harmónico aos nossos sentidos (não nos podemos esquecer que as categorias estéticas vão do Belo ao Horrível). Mas essa criação integra-se hoje, e cada vez mais, num conceito de intervenção e interacção entre atitudes plásticas (já os cubistas o tinham percebido).

A uma atitude de “virar para dentro”, as várias expressões artísticas começam paulatinamente a dialogar com as outras (nem sempre escapando a verdadeiras “peixeiradas”). Muitos arquitectos encontraram já a escultura como forma expressiva do seu trabalho (veja-se o caso do desconstrutivismo), muitos pintores procuram no Happening, na instalação, na fotografia, métodos impressivos e expressivos para o seu percurso estético.

A fotografia é, pela sua história ainda curta, uma das expressões artísticas que tem mais preservado uma certa unicidade formal. Urge afastar fantasmas. E ninguém melhor que os amadores (que nada devem a saberes fazeres formais) para ousar! Mais do que fazer fotografia (e já nem falo no tirar fotografias) é tempo de intervir sobre fotografia!

Mesmo que nos digam – “isto não é fotografia!”
Mesmo que nos digam – “cambada de doidos varridos!”
Mesmo que nos digam – “deixem-se de tretas e façam a verdadeira fotografia!”
Mesmo que nos digam – “dou-vos 500 euros para apagarem essa merda!”
Mesmo que nos digam – “apanho-te lá fora e parto-te todo!”
Mesmo que nos chamem – “calhordas, filibusteiros, diletantes, ornitorrincos!”

É tempo de intervir sobre fotografia!!!

quinta-feira, maio 19, 2005

A Fotografia como objecto é banal

A fotografia como objecto é banal. Simples imagem aposta em suportes diversos, vidro, chapa metálica, papel, ecrã de computador... processos mecânicos mais ou menos elaborados, mas sempre banais. Banais porque repetidos e repetíveis, banais porque significam aquilo que já toda a gente está à espera – uma fotografia! Contudo, a ligação entre a fotografia e quem fotografou e/ou manipulou, é tudo menos banal. Porque aí é memória e cada memória é singular, única e irrepetível. Nunca dois seres poderão partilhar uma única memória. Mesmo que um momento seja vivido pelos dois, cada um criará uma memória própria do seu momento. Há formas de divulgar memórias, mas os estímulos dos objectos banais/memórias dos objectos, agem sempre de uma maneira diferente tendo em conta cada um dos intervenientes da comunicação – o que mostra a imagem e o que permite que a imagem seja mostrada e se transforme em imagem/memória para os outros. A memória, então nunca será banal. Sempre será singular

A propósito de um texto de M. Teresa Siza*

A Imagem Emotiva


No passado número de Novembro, a revista Cais, como já vem sendo hábito, publicou as fotos do World Press Photo 2004. Nesse contexto, M. Teresa Siza introduz com um pequeno mas interessante texto submetido ao título – A Imagem Emotiva.
O artigo vive de uma ideia marcante e ao mesmo tempo dualitária. Por um lado a existência de uma crise de representatividade do fotojornalismo (que não de importância) e por outro, o aumento do espaço da fotografia junto dos museus, como objecto de fruição artística. Assim, nota-se que o fotojornalismo está cada vez mais na berra, com uma sociedade que cada vez mais se afirma iconográfica, porém nota-se também que a informação que essa variante da fotografia procura é assumidamente subjectiva. No fundo, afirma-se um fotojornalismo mais reflexivo e menos ilustrativo.
É notório que o fotojornalismo ganhou galões de fotografia de autor, logo com os fotógrafos a obterem um estatuto de criadores. Ao serem capacitadas como objectos integrantes de mostras pessoais, portanto descontextualizadas dos seus locais de origem (jornais e revistas), as fotografias assumem um subjectivismo ao nível da compreensão que se situa, como diz a autora, numa “brecha entre a realidade e a ficção”.
Um bom texto, sobretudo um bom ponto de partida para quem quiser fazer uma reflexão sobre estes assuntos…


* Directora do Centro Português de Fotografia

Tsunami de imagens

Tsunami de imagens


No passado domingo, dia 9 de Janeiro de 2005, a revista Pública, convidou o sociólogo (e professor de História e Teoria da Fotografia na FCH da UNL) a analisar a avalanche de fotografias que nos chegaram da terrível tragédia de 26 de Dezembro. O resultado foi publicado através de um texto escrito por Paulo Moura.
Em primeiro lugar, Mah tenta perceber o porquê do enorme sucesso que teve a fotografia de Gurinder Osan, em Silver Beach, Cuddalore, Índia, que mostra um pai e uma mãe, debruçados (e destroçados), chorando sobre o corpo do filho morto. A foto regista um dos pontos mais altos da dor, a dor dos pais pela morte de um filho. Para Mah, para além da fotografia em si que constitui como arquétipo da representação da dor na pintura clássica (algo com o qual eu não posso concordar, mas que não tem aqui cabimento discutir), a imagem remete-nos para a sublimação da dor, através de uma faceta da fotografia, a que podemos chamar de anestesia – uma capacidade de imobilizar e filtrar um momento, sendo assim o domínio ideal para se repensar a morte. Para além da reflexão de Sérgio Mah, eu referiria aqui a capacidade da fotografia em nos aproximar de um momento, sem que esse momento nos pertença (isto do ponto de vista do observador, claro).
Numa segunda parte do texto, surge-nos a reflexão mais interessante e, talvez, mais desconfortável. Com que direito se faz arte com dor? Mah advoga, para estas situações de fotojornalismo, o que ele chama de imagens diferidas, mantendo uma distância grande da dor humana e, em especial, evitando estratégias de dramatização formal da fotografia. Segundo ele, a tragédia nunca pode ser bela, de modo que quando se diz – “esta foto é bela, apesar da situação que mostra”, estamos a cair num equívoco moral.

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