sexta-feira, maio 20, 2005

Outra vez o Banal

Por vezes, o melhor método para se tentar compreender as palavras é recorrer à sua génese. Encontramos aí situações extremamente curiosas. É o que acontece com o termo “banal”, que alguns linguistas acreditam ser um galicismo escusado, mas que hoje se banalizou, a ponto de entrar para uma linguagem erudita, substituindo o termo “vulgar”. Mas a sua génese nada tem de vulgar (ligado ao povo). Pelo contrário, o termo vem de poder de Bannus, que designava, na origem, o poder geral de comando, um direito dos chefes guerreiros germânicos que trespassou para o direito feudal, na Idade Média. Com o feudalismo consolidado, passou a designar (banalidades) uma espécie de imposto, em que os camponeses de um feudo eram obrigados a utilizar determinados equipamentos (pagando por isso), propriedade do senhor do feudo. E é daí que o termo banalidade passa a significar o mesmo que vulgar.

Hoje em dia, como já disse, banal acaba por ter um sentido mais erudito que vulgar e é aproveitado para dar mais força a determinadas expressões. Em arte é muitas vezes utilizado o termo banalização. Uma imagem, repetida muitas vezes, banaliza-se, torna-se vulgar, não original. Durante muito tempo (e ainda hoje) os artistas tentaram ser tudo, menos banais. Pelo contrário, nota-se uma tentativa de procura da originalidade. Mas essa procura obriga a rupturas. Momentos há, da história da arte, em que a necessidade de fixar gostos, correntes, movimentos, provocavam a necessidade de banalizar formas, em que a criação recorria a plastificações banais, mas com maior ou menor rigor do que se entendia por “boa” arte. A determinada altura, um novo espírito recomeçava a demanda da procura da originalidade, criticando veementemente a banalização e o processo continuava. Ruptura, banalização, ruptura, eis o ritmo da história da arte ocidental (o Oriente é outra história).
Outra questão em que os artistas tinham que ter muito cuidado era a banalização das temáticas. Ai daquele que se permitisse mostrar o que era banal, o que era do dia a dia. É o século XIX que põe isto em causa. Cada vez mais a vida quotidiana tem uma expressão na imagética artística, cada vez mais o objecto banal se encontra na tela, na tábua, no papel fotográfico. Pois, porque a fotografia tem aqui um papel fundamental, na desbanalização do objecto banal. Mas foi, já no século XX, que movimentos como o Dada, a Arte Pop, etc., descobriram o objecto banal com potencialidades de sacralização. É assim que um urinol se transforma pela adição de um simples título – “Fonte da Vida”, é assim que uma lata de sopa de tomate se torna num ícone de uma quase civilização. Mas não se iludam, não foi a força plástica que serviu de argumento. Foi a ideia.

E a fotografia? Ela está no cerne de toda esta questão. Não é ela a intrusa no mundo das artes plásticas do século XIX? Não foi ela parceira constante dos movimentos atrás mencionados? Ele é Man Ray, eles são os métodos de fotogravura. Até o hiper-realismo vem agora imitar a fotografia e a body art e a land art só existem, só são perenes porque existe a fotografia.
Mas a fotografia quer autonomia. Torna-se uma arte por direito próprio, porque é memória e criação e comunicação. Afinal as características de qualquer arte pura e dura! Mas é aquela que mais risco corre de banalização. Tanto da forma como da temática. Vejam as discussões infindáveis acerca do que é fotografia. Manipulação digital é fotografia? Mais um PDS, mais um barquinho, mais um gatinho, olha uma foto de família!!! Fotografar arquitectura é original? E se for escultura? E se for pintura? Afinal o que é banal? Tudo é banal, menos a sensibilidade, menos o bom gosto. Ora aqui temos uma realização do século XIX, que afinal tão hodierna é – sensibilidade e bom gosto. E memória e criação. Criemos então, criemos a partir de memórias que são nossas e portanto nunca banais, uma memória não pode ser partilhada, só o registo dessa memória, que se torna apenas vestígio. Um dos filósofos de que eu mais gosto, Merleau-Ponty, disse uma vez que “um homem nasceu no instante em que o que era apenas no fundo do corpo materno, um visível virtual, se tornou ao mesmo tempo visível para nós e para si (tal como) a visão do pintor é um nascer continuado”. Creio que podemos dizer o mesmo do fotógrafo (do fotógrafo consciente)! Também a visão do fotógrafo é um nascer continuado, também a fotografia nasce no momento em que o visível virtual (memória do objecto) se torna ao mesmo tempo num visível para nós e para si (fotógrafo/ser). Logo nunca é banal!

Web Counter