domingo, maio 22, 2005

O tempo

“Sabes, frei António, o tempo é algo que não se sente, que não se pensa. Há um tempo para mandar, um tempo para sofrer, um tempo para amar, enfim há um tempo para tudo, mas o tempo não se pode pensar e sentir. Tu pensas o tempo, frei António? Não, tu pensas no tempo! Tu sentes o tempo? Não, tu só podes sentir no tempo, porque o tempo, frei António, é algo fugidio, é tão instante que se torna impossível de captar. Mas o tempo faz parte de nós, não o pensamos, não o sentimos, mas em nós o pressentimos, em nós o percepcionamos, o tempo existe por nós! Pressentes em ti o tempo, frei António?”

Isto escrevi há uns meses, num texto que já não é meu, porque o ofereci ao Vasco Ribeiro (um grande abraço para ti). Escrevi-o para uma fotografia e nele falo do tempo, no tempo, esse grande escultor, como já lhe chamaram, no tempo que nos vai esculpindo, sem nunca se enganar no escopro e no cinzel. O tempo que é irrepetível, irrecusável e instante. O ser humano desde muito cedo pensou no tempo porque nunca o conseguiu dominar. Já lhe chamou Deus e lhe consagrou imagens e templos, já lhe teceu loas, já viveu e morreu por ele...
Desde muito cedo os artistas o quiseram representar, depois aprisionar, depois libertar. Ele é Cronos, mas também Janus. O derradeiro sentido do homem é o da imortalidade, porque isso lhe permitirá sair do tempo.

Vem todo este arrazoado, que espero me perdoem, pelo facto da fotografia ser uma arte do tempo. Tempo e luz, eis a matéria-prima da fotografia, o resto é técnica e saber-fazer. A fotografia pretende captar a luz inscrevendo-a num tempo. Mas é um tempo que se torna intemporal, porque o tempo escapa-se a todos. Tentem conservar uma pedra de gelo em cima da areia do Sara ao meio-dia, assim é tentar captar o tempo numa fotografia. Apenas ficaremos com uma imagem fugidia, da água que se some ao nosso olhar, uma memória apenas. Já o disse uma, fotografias são farrapos de memórias, vestígios dessas memórias que depois tentamos reconstituir num processo arqueológico, pedaço a pedaço. Quando mostramos uma fotografia somos arqueólogos da memória e o que queremos é que a nossa memória seja reconhecida através de uma espécie de mapa do tesouro, onde damos pistas – “vejam, este sou eu, este é o meu tempo, este é o tempo em que eu vivi, o tempo em que eu procurei ser constantemente novo, em que eu procurei reviver em instantes que hoje mostro!”. Fazer fotografia é assim uma maneira em que procuramos os vestígios da nossa imortalidade, nunca conseguida mas sempre procurada.

Mas o que tem este texto a ver com fotografia? É que este reconhecimento da memória está presente em todas as formas de arte. Porque arte é sempre uma forma que se inscreve na cultura e cultura, entre outras funções, serve como memória extracorpórea, talvez uma das coisas que nos torna singulares no mundo animal. Ao fotografar o Palacete do Visconde de Sacavém, em Lisboa, eu estou a ter uma atitude de meta-arte. Eu mostro o mapa do tesouro do Visconde, mas esse mapa também é meu, porque o estudei ou, pura e simplesmente, porque o vi e o fotografei. E assim, através de uma ilusão técnica, o tempo do Visconde se misturou com o meu. Não falo em destino, porque esse seria futuro e o futuro não existe. As feiticeiras gregas teciam as linhas do destino, a magia da fotografia tece as linhas do passado, da nossa memória, de nós.

2 Comments:

At 11:06 da manhã, Blogger Unknown said...

Joao qual a fotografia do Vasco recebeu esse texto?

Roberta Jardim

 
At 11:58 da manhã, Blogger João Castela Cravo said...

Roberta, respondi-te por mail

 

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